a trajetória da pedra

As pedras têm cheiro, encanto, vontade essa de se deixar levar, de descer ladeiras, de serem atraidas pelas ondas do mar, adentradas pela água com força e suavidade. Tropeçam nas areias, escorregam pelas dunas, deitam nas beiras. Entre tantas que existem por aí, houve uma, que sabida como era, fez da força e da intensidade da água suas aliadas. Como as outras foi tragada para o fundo fundinho do oceano.

Só que...quando submergiu, uma coisa estranha e engraçada aconteceu, ela - a pedra - se tornou sereia, sem ter nascido para ser uma, sem saber ser. Como toda sereia, ao cantar atraía muitos seres, muitas formas de vida: anjos e coisas estranhas; pequenos budas e formigas bundudas; joaninhas e cigarras desafinadas; os étceteras eram infinitos.

Houve um instante, em que a atração era tão tamanha, tão imensa, que a sereia sentia arranhões em seu coração, sentia que cada ser que se aproximava dela quando partia arrancava um pedaço, uma lasca de sua pele, enquanto seus poros pediam mais odores, mais aromas, e junto com essas coisas a água que a adentrava era cada vez mais forte, menos suave. Arrebentava, destroçava, e afastava dela uma coisa chamada êxtase: um parecer e estar no mundo que permitia à sua vida ser lagoa e ser maré.

Numa manhã, o canto da sereia mergulhou para si um menino desajeitoso, pés abaporu, cabelos que brigavam com o vento, olhos tímidos de ver o horizonte, tão sensíveis que até doíam, às vezes silenciavam quando encontravam os dela. O fato mesmo é que o menino falava demais, explicava cantos, encantos, contava causos, justificava acasos, mexia e remexia aquela boca grande, não parava de sair sentenças, frases, ponto final, exclamação, reticências e muitas, muitas perguntas.

A sereia se perguntava, assim, só com o pensamento, esse menino beija ou num beija, porque os bem-te-vi beija, os beija-flor, é claro, beija, os papagaios também, fala mais do que beija. Papagaio, inclusive fala dum jeito ardido, diferente do menino, quando ele diz, o que ele diz declina na boca da sereia, envolve o seu pescoço, acaricia suas costas, faz mel em suas mãos. Aquele doce que percorre seus braços, suas veias, enfim, o caminho da pele.

Só que esse menino era um, havia tantos, cada um chegava de um jeito, uns queriam se aconchegar, outros não. Se tornou preciso aprender o caminho de cada um. Porque cada lua cheia, cada estrela cadente, pôr-do-sol, amanhecer, aurora, têm a sua beleza em serem o que são, sendo uns enlaçados aos outros.

No seu canto, a sereia precisa descobrir a fragrância da melodia e o gosto do acorde. O menino-poeta, em sua vida, desejoso de ser um lá maior à sétima aumentada, ou seja, uma janela grande e aberta, a lua cheia quase entra no quarto da gente. Um ré maior a sétima aumentada, também, quando a cintura, o busto e as pernas, que são tantas, entram dentro da coberta, envolvem o lençol  e pousam nos braços quentes como chocolate derretido, gente esparramando e juntando gente, suor.

Quem sabe, permaneceria o menino e a sereia entre o lá maior a sétima aumentada e o ré maior a sétima aumentada adiando o nascimento do sol, seguindo a brisa das ondas do mar, larva de vulcão vencendo o frio da noite serena, transformando a prudência num ninho para pousar e alçar vôo.



Quando o sol der sinal de sua nova visita, aquele cheiro amargo, ritmado entre o doce e meigo entrará por de baixo da porta, convidará a sereia e o menino a se lançarem novamente para a superfície, sentindo a tensão dispersar, até que todos os fluídos oceânicos novamente se encontrem e produzam novos amanheceres...



Qual é o ponto final?

Eu gosto da luz amarela que entra na cozinha quando abro a porta, de sentir o cheiro do café quando estou na sala de casa, de vê-la envolvida no lençol aqui do outro lado do corredor. Gosto de saber que você está naquela cama, tão perto de mim, de ouvir a sua respiração quando me deito ao seu lado, de saber que posso deixar a porta do banheiro aberta enquanto tomo banho. Sinto cada dedo seu encontrar os meus cabelos pela manhã, me despertam bailando sobre o nosso abismo, me convidam para provar o doce da vida, outra vez, novamente. Lábios que renasceram depois que conheci cada beijo seu, alguns vorazes, impetuosos e devoradores, outros que passaram por de baixo da porta, que souberam aproveitar as fendas na parede, no buraco da fechadura, que transformaram cada rachadura em minha alma em um convite para as horas escuras que antecedem o novo dia que vem. 

Com o olho mágico caminho pelas marcas da sua pele, permaneceram no travesseiro, no lençol molhado de gente, no seu cheiro que continua em mim, nas minhas roupas, mesmo quando você vai embora. E já te pedi tantas vezes para não deixar a toalha sobre a cama, já te falei dos fios de cabelo que ficam na pia do banheiro, e já invadi o seu silêncio com o meu cheiro de cachaça. Você me disse o pensamento desviante que havia em mim, as ideias que só tinha coragem de encarar na frente do espelho, o desejo que coloquei na gaveta, de baixo de tantos projetos inacabados. Você foi a musa, artista e dançarina, com a sua boca vermelha bem perto do meu ouvido, enquanto a sua mão branca e pequenina pousava sobre o meu peito. No olho do furacão, no ventre de todas as revoluções, e nós só precisávamos estar ali, um do lado do outro, nos contaminando, sendo impuros, conscientes de nossa imperfeição, revirando a vida de cabeça para baixo, bagunçando os papéis na mesa do escritório. Sabendo do intervalo que existe entre uma batida e outra, do sopro de vida que não morre junto com a gente, da enorme confusão que nos envolveu. 

Qual é o ponto final entre a minha fala e a sua?  

Qual é a fenda de seu corpo que não conhece um dedo meu? 

Como a gente resolve o fim desse dia, 
Que só é mais um, 
Que venho depois de tantos, 
Que antecede muitos outros?


Afetação 

Permanecer em silêncio, estar na penumbra. Quando as pálpebras pesam, os olhos buscam um foco mais perto de si. Deixar que o corpo tombe no meio do dia, que as pernas cessem por um instante, guardar os passos por um segundo que seja. Mas quem pode responder sobre a intensidade e a duração do tempo? Como sabemos sobre quanto tempo vai durar um sentimento? Ás vezes, nem sequer sabemos da sua origem, não sabemos explicar os motivos ou justificá-lo. As explicações e as justificavtivas, às vezes, não são suficientes. Não são o que se precisa, quando toda cicatriz, quando toda ferida nos leva ao pico de uma montanha. Os nossos pés estão plantados lá em cima e existe um vale que nos separa de uma outra superfície. Colocamos a mão, direita ou esquerda, na testa, sobre os olhos. O horizonte mais perto que conseguimos enxergar está muito longe, muito distante de quem está do outro lado. Sutilmente, somos lembrados que a gravidade existe, a firmeza do nosso eixo é contestada. Se a vida é uma questão de equilíbrio, nós conhecemos a corda bamba. É uma corda fina e afinada como gilete, deixamos um pouco da nossa pele a cada movimento do nosso caminho. Seguimos num rumo que acreditamos conhecer, mas o vento estremece o nosso chão, se a vida fosse só certezas, não haveria portas escondidas em becos sem saída.
Saiba, que mesmo na escuridão existe a possibilidade do grito e ele pode ecoar, pode como um suspiro estrondoso que desperta os pássaros, que assobia canções nos cabelos das árvores. As asas que passam pelas cozinhas de manhã cedo, buscam migalhas, mas têm a vista aguçada e enfrentam céus de peitos abertos. Nós, que podemos guardar um amor no peito, que podemos cultivá-lo com gestos miúdos de felizes aprendizes, podemos nos convidar para os quintais pelas noites, podemos enchê-los de sonho e esperança, depois recolher cada riso que uma rapariguinha nos deixou. Ainda há tempo de serestas, pois despendurem as chuteiras, deixem os chinelos nas arquibancadas e corram para os arcos, entre as laterais. Gritem pragas, brindem vitórias, chorem derrotas e amanheçam sedentos por mais. Na esquina, encontraremos mais um de viola na mão, mas que distinto dos outros, diante do pranto e da dor, cantará o sonho. Esse é o prelúdio número dois de Vila-Lobos, o que sei? Que amei, que ainda posso amar. Que só chamo de irmão quem se entrega numa intensidade raçuda, quem sonha com a gente. Quem nos chama de essência, quem soa sincero no "meu querido", quem nos é nêgo, quem nos é nêga, quem não tem medo de nos dizer que nos guarda no peito.
Te trago, violão, de baixo do braço, não minto, espero muito das horas que virão, reconheço os que sabem bailar, os que sabem cantar, os que embelezam a vida por ser e assim estar.
Reconheço-me em ti, me reconheço, como naquele dia que nosso vale se fez nascente, que o sol brilhe em nosso oceano.


A casa velha e minha vó 

É uma casa velha e cheia de bichos, ela treme quando os carros passam pela rua, ela possui uma rachadura na parede, quisera fosse uma fenda para a liberdade. Minha vó me ensinou a não ter medo de bichos, deitada na cama que era do meu irmão, com as mãos no peito como ela fazia na hora do sono, me disse que as aranhas de parede, essas de pernas bem fininhas, essas que quase somem da vista da gente, não fazem mal. Eu acreditei nela, não conhecia outra pessoa que entendesse tanto de bichos, ela me apresentou o bolinho de polvilho e o pé de moleque, essas coisas que desmancham na boca da gente, que enchem a nossa boca, as nossas mãos, a nossa camisa, de farelo, de resto de comida gostosa. Minha vó era uma mulher poderosa, contava histórias sobre o meu avô num cavalo branco, sobre a cobra que dormia na casa deles toda noite, sobre os filhos que um dia foram crianças, era interessante e estranho saber que a minha mãe já havia sido criança. Minha vó tinha os cabelos pretos, longos e encaracolados, imensos, quando alguém tocava uma canção que se aconchegava no seu coração, ela colocava as mãos na boca, os olhos brilhavam. Não era muito fácil tirar fotos dela, não gostava muito de fazer pose, era preciso encontrar o sorriso sincero dela. Era um sorriso pequeno, um sol que dava seus primeiros sinais de vida, novamente. Ela fazia questão de encher nossos pratos com feijão, entendia que tinha saúde quem comia bem, se lembrava de coisas que eu mesmo esquecia, como cuidar de mim e a minha alergia. Minha vó, eu andei muito longe nos últimos anos, agi igual muita gente adulta, enchi os meus dias de ocupações, me tornei uma pessoa extremamente ocupada. Da última vez que a vi, seus olhos estavam fechados, não era possível ouvir a sua respiração, ela estava com as mãos no peito, como fazia na hora do sono ou de fazer uma oração, minha vó estava descansando. Não consegui ir até a ela e lhe dar um último beijo na testa, me despedi de longe sem dizer adeus. Trago o seu passo arrastado na minha caminhada, continuo buscando o sorriso sincero, olhos que brilhem, e alguém que me ensine a não ter medo dos bichos, nem do meu próprio coração.


A garota e o cardiologista 

A garota vai ao cardiologista, ela diz:
- Tá foda...tá batendo forte, rápido e forte. 
O cardiologista pede para que a garota faça uns exames.
Ela volta com os resultados. Ele aperta o play e diz:
- Tá ouvindo...aqui, ó.
Espera um pouquinho...
...escuta, nesse batida aqui ó, acho que é um samba...um sambinha. 
Um Cartola? Será um Cartola?



A fera que mora na neblina

Quis escrever sobre o amor para que ele não fosse apenas meu, para que ele pudesse voltar nas noites em que o corpo é menos que uma flor, encostado no braço do sofá. Para que não tivesse medo dos dentes que estão afiados, não de alegria.

Quis escrever o amor no papel sem linha, uma vírgula que antecedesse a tua pronúncia. Reticências indicativas de tua ênfase.

Que pudesse ler a palavra amor até que ela saltasse do papel, que me acenasse que há tanto céu, como tamanho chão. Construir um poema que pudesse dar voltas pela tua cintura, beliscar o sonho e encher a tua vida de vermelho, vermelho, vermelho, rosa.

Quis aprender a falar amor para que o próprio som já não fosse o pensamento. Sim o músculo abandonado à dança das águas, à perspectiva de profundidade que anseia pela nossa andança distraída. Para que a tua boca encontrasse o suspiro antes que a expressão do amor adquira forma no papel, esteja perdida no perigoso caminho de anunciar teu significado.

Quis cantar o amor para que sua cadência se emancipasse da tonalidade da voz. Que o seu timbre fosse perceptível nas arestas camufladas entre as intersecções das paredes, nos móbiles que brincam com o vento e encontram liberdade na sutileza do movimento.

Quis viver amor para eu não fosse apenas quem sou, para que no gole de conhaque, na corda de violão que convida o dedo aflito, despertassem tantos. Para que a fera que me observa na sombra da alameda não tenha medo da noite, para que eu possa encontrar no seu odor a minha segunda pele. Para que eu viva a cor de seus olhos, para que sejamos o tom de areia envolvido na pintura apaixonada.

Quis me tornar amor para que o trânsito entre nossas almas fosse o beijo matutino. O beijo que vivendo sonhei perambulando entre labaredas e gotas – intermitentes – de chuva que me acompanharam no caminho de volta para casa. Já não era o mesmo, essa era a conquista que nos acenava entre os dentes da fera que mora na neblina.

Ao brilho incerto de alguma estrela

Cadência de alguma estrela que me visita nas horas insônes. Que esteja bem, viva e aqui comigo na próxima noite. 
Que consiga lidar com aquela lágrima que te alcança bem na hora que está distraída. E deveria estar adormecida. 
Não desejo que encontre um "meio termo", saiba usar "bom senso" ou aprenda a não avançar durante o sinal amarelo. 
Mas que saiba deixar o corpo queimar. O fogo alcançar a ponta dos lábios, ou a carne dos dedos que fica logo depois da textura da unha. Isso é não ter medo de sentir aquela paixão que te arde na alma e nada te promete. 
Que você encontre sentido em algumas palavras marcadas em uma página já amarelada, ou em alguma música romântica, que além de romântica, seja brega. Bem brega como aquelas que tocam em alguma estação de rádio quando você se lembra de esquecer todas as tecnologias que te prometem controle sobre todas as mídias, sobre todas as horas que seriam devotadas para o prazer, diversão, entretenimento e distração. 
Que possa sentir êxtase - novamente - depois de ter conhecido a beleza das flores, ter se embriagado com um bom vinho chileno, ter sentido a suavidade dos tecidos que te vestem a camada da pele. 
Que encontre a genuidade da felicidade naquele sorriso que sua boca, seus lábios, não podem simular. Aquela energia doce e meiga que a sinceridade de uma criança esboça na expressão de um sentimento de egoísmo, ou no pranto verdadeiramente solícito que compartilha algum momento de altruísmo. Como só ela poderia fazer sem se perder em tramas e jogos de relações de poder. 
Que possa reconhecer o amor quando ele se aproxima de você, brilha em você, brinca com você. Que aprenda a não subestimar a sua força, ou a impetuosidade de seus instantes quentes, embriagantes e delirantes. 
Que possa se sentar em alguma cadeira antiga, chamada equivocadamente de "retrô", na varanda debruçada sobre alguma planície verde e bela. Onde possa sentir além do cheiro, o aroma quase evanescente, fragrante, do café preto e amargo enquanto a memória permanece tão viva. Intensa como pôde sentir o seu coração bater pela sua boca, suas mãos agarrarem por onde seus pés caminhariam, quando sentiu o desejo...assim...florescendo, germinando, crescendo...ardente no horizonte onde seria impossível não viver o fogo que muda de cor. Chama azul, cadência da pele. Incandescida, para além de qualquer forma, lei, convenção, ou regra. Apenas viva e reluzente quanto o calor do bico vermelho do teu peito deita à soleira da janela. 
E as comportas, e as portas, estão abertas, ainda que toda travessia seja incerta e destino algum possa ser confirmado, ou servir de abrigo. 


Na Argentina, Martina me pediu para tocar “insensatez”

Não me atrevo a chamar isso que escrevo de carta. Não é uma correspondência porque sei que não receberá. Queria que fosse um cartão, ou um convite, de visita. Já me perguntaram se sei qual é o teu endereço, ou o número do teu telefone, mas respondi negativamente, disse que não. Eu nunca soube onde, ou como, você morava. Sequer como fazer para entrar em contato com você, mas você sabia qual era o caminho para me alcançar. Talvez ainda saiba. Foi o que pareceu naquela noite quando... lançou a pergunta:
- O que é o amor?
Isso foi depois de eu não saber como elogiar o macarrão que você havia cozinhado. Não me recordo, agora, com qual molho você serviu. Parecia muito simples, já era noite e só havia almoçado naquele dia. Acho que tentei dizer, mesmo sem saber se era o melhor momento, que te achava linda, mas disse outra coisa, ainda assim você sorria. Teu sorriso engrandecia teus olhos azuis. Eram imensos, podiam ver que me faltava o jeito para falar. Podiam saber que minha alma esperava um convite para se pronunciar. Que o desejo jorrava quente por dentro da pele. Que o coração acelerava. 
Eu podia sentir a tua presença na noite daquela casa docemente iluminada. Demorei o dia todo para encontrar aquele abrigo. Um tipo, uma espécie, de refúgio. 
Estava em uma país estrangeiro, sabia como se chamava o idioma que nele era falado, mas não sabia dizê-lo, ou pronunciá-lo. Havia um amigo, que conheci durante a viagem, estava sentado ao meu lado, enquanto você servia o macarrão e contava histórias de uma gente, de um continente, para teus hijos que te sorriam enquanto ouviam. Nos olhos deles, um brilho se acendia. 
E havia ele, também, não sentava ao teu lado, mas parecia ser teu cúmplice nessa história que envolvia teus hijos. Ser teu companheiro. Você se chamava Martina, ele, Marcos. As crianças também tinham nomes bonitos. Lautero, Angelito e Luz. Esta era a mais pequenina, com cabelos loiros como o seu também era, parecia ter completado dois anos há poucos meses. 
Nós comemos, juntos, a comida que você havia preparado. E bebemos uma cerveja quente, mais amarga que essas que conheço no país que habito, para o qual voltei. Era uma boa cerveja, penso. Talvez porque fosse ainda maior a minha sede, ainda mais a fome que já sentia, que não queria nomear, pelos teus olhos. 
Nós, os estrangeiros, acordamos no outro dia, bem cedo, para conhecer mais do país habitado por você. Cada lugar parecia muito longe, parecia haver muito encanto nos lugares que ficavam no meio, enquanto percorríamos a trajetória entre um destino e outro. À noite, voltamos para a casa iluminada, onde te vi pela primeira vez. Mas você não estava nela. 
Houve festas, celebrações, apresentações de bandas de rock, conversas sobre futebol, vinho compartilhado. Aprendemos a fazer hamburguer, a dizer mangue te camela, que é eu te amo em alguma língua cigana, mas você não estava la. Convenci-me que não te veria novamente. Melhor assim, pensei. Ela foi um fantasma que transitou por algum espaço, pelo qual eu passava, também. Ela foi estrela, cujo o brilho se encontra imerso na escuridão. Assim falei para mim mesmo e meu coração. Falei, em silêncio, porque também não havia dito, ou usado a boca, para expressar que senti fome de teus olhos na primeira noite em teu país, na casa em que você me recebeu. 
Foram um, dois, três, quatro...dias. Noite, também. Quase uma semana. Era Domingo, que tem cara de deserto, quando sentimos vontade de decretar:
- Ah, hoje é dia de...nada. 
Eu e meu amigo comemos nosso último lanche naquele bairro, naquela cidade. Regressamos a casa que nos hospedava. Você estava lá. Bailava com Luz em seu colo. Lautero e Angelito admiravam. Brilhavam os olhos. Os meus, também. Havia música, uma moça com longos cabelos castanhos encaracolados tocava flauta, um rapaz moreno sentado em um caixote, percussionava este com suas mãos ágeis. 
Alguém recordou o que me pareceu passar despercebido. Me convidou a tocar o violão. Eles me pediram samba. Mas toque e cantei o Cidadão Livre. Eles entoaram junto:
- Na na na na na ná. Na na na na na ná...
A moça me acompanhava com a flauta, mas era eu quem tentava vibrar as cordas do violão ao som do seu fraseado. Tudo isso em poucos acordes. Pouco a pouco, cada um se despedia e agradecia o momento de festividade brotado na noite de Domingo. 
Você, nesta hora mais tardia, estava sentada em um canto, com os olhos lacrimejantes que me fitavam. Me aproximei, ainda com o violão. Me pediu para tocar “insensatez”:
- Esta não sei, mas tem essa aqui. Toquei “Lígia”. Quando terminei a execução sofrível da canção, você respondeu, no idioma que conheço e sei pronunciar, Em português:
- Muito bonito, mas não gosto de música que não entendo a letra. 
Naquele momento poderia me afundar no chão, esquecer de mim de baixo da mesa. Deixar o violão e seguir pelo vão manifesto pela porta aberta. 
Outros se aproximaram de nós, sentaram ao nosso redor. Marcos, nesse instante, ao lado de Paola, que trajava um bonito vestido verde. O tecido cobria a pele branca dela enquanto dobrava as pernas sobre a cadeira em que sentava. A irmã de Marcos, Marlene, ocupava lugar do outro lado da mesa. Ele e o meu amigo se revesavam no violão e cantam histórias das canções que entoavam. Somente eu e você bebíamos cerveja. Você me olhava e dizia:
- Cerveza?
- Sim. Respondia, você enchia o copo que eu usava. 
As histórias e as canções tocadas se tornaram uma conversação. Tentava participar do diálogo, interagir. MInhas palavras se demonstravam incompreensíveis. A tentativa de tradução oriunda do meu amigo rascunhava caretas em sua face. Como se não entendesse, ou não gostasse do que ouvisse. Talvez fosse outra coisa que te irritasse. 
Madrugada avançada, Marcos anunciou a partida, Paola seguiu com ele. Você e Marlene se afastaram. Dedilhei nas cordas do violão um verso sobre o que seria do tempo vivido, agora pretérito, se você me permitisse o caminho que te alcançaria. 
Era quase manhã, faltava pouco, o céu ainda estava escuro. Você e Marlene retornaram à mesa. Sentou-se ao meu lado, olhou pra mim e meu amigo:
- O que é o amor? Sin traducción!
E apontou para mim:
- Você primeiro. 
- Humm...Roberto Carlos... Quando amo não me importo se sou dominado, ou se domino. Me sinto como um gigante e nada mais que um menino. Deixo rolar. Comprende?
- Si. Você disse. 
Meu amigo, no idioma que era teu, começou a falar de maneira eloquente. Você interrompia impetuosamente. Ele retomava. Enquanto se desenrolava o debate, houve uma queda da energia elétrica. Luz interrompida. Na escuridão, por de baixo da mesa e das cadeiras, primeiro um pé, depois o outro, encontrou o seu. O brilho azul dos teus olhos lançado aos meus. Nossas mãos aprendiam o caminho tecido pelos pés. Nesse instante quase em transe, um choro emergiu do quarto onde seus filhos dormiam. 
Você se retirou da mesa e quando voltou começamos novamente. AInda escuro, só iluminava a luz que emanava de teus olhos. Primeiro os pés, depois as mãos, um de cada vez. Quando a luz se acendeu, segurei firme as tuas mãos:
- Queres entrar acá? Você perguntou apontando para o meio do próprio peito. 
- Si. E imergimos na nascente de nossos beijos até o tempo amanhecido.

Um filme sobre o amor 

Um filme sobre o amor, sobre a possibilidade de sua existência. O amor em sua essência, ou seja, cheio de contradições, de singularidades mutantes, de passos errantes. Sempre caminho certeiro para constantes jovens aprendizes. Em seus momentos mais incipientes, uma flor que brota no asfalto, no seu estado de madureza, o encanto da possível conquista. Jamais prematuro, ou tarde demais para acontecer, desafia qualquer esperança um dia cogitada, é fundamentalmente reconhecido na prospectiva incompletude. 
O amor que nasce de um encontro. Que passa por nós como um atropelamento, que desafia o sinal fechado, muito mais fragrância do que brevidade. Portanto é um filme sobre a ausência, sobre a presença sutil de uma brisa, só poderia ter a sua base fundada num furacão, como um bilhete mal escrito, um recado não entendido e o limite da tolerância. A estreiteza dos limites contestada, a certeza da tortuosidade. A necessidade de encontrar amor na próxima esquina, mesmo que ela seja adiada, ou, às vezes, pareça estar atrasada.
Um filme, cujo argumento nasceu do olho mágico encontrando amor no asfalto, no concreto. Ouvindo o canto da sereia perdido na multidão, resistente, buscando aconchego no banco de um ônibus, no final de um dia de trabalho, no encerramento do expediente ou na hora do almoço. Brincando com a aurora do fim de tarde, com o gozo do sol no fim da noite e começo de um novo dia. A luz cai, ainda viva, num novo dia que é apenas uma manhã alegre. Este olho mágico, que soube do amanhã: interrupção sem deixar ferida no coração.
Um filme que começa várias vezes, parece não ter final, é todo desenlace. Inicia com uma canção, pois é um convite para uma dança. Aprende com a noite, anoitece na ilusão da solidão num balcão de bar. Entre uma cerveja e outra, um olhar vindo de uma outra direção, um banco vazio para quem chega, a sorte de poder fazer um pedido. Um Martini, um rabo de galo, um conhaque ou uma cerveja. Uma conversa fragmentada, um sorriso retalhado, uma alegria inesperada, pode ser que ainda não seja. No lugar do que uma noite fosse, “pensamentos que incomodam como andar a chuva”. São pés vagarosos, lentos, de volta para casa, braços encerrados no próprio peito, fechados para o vento frio da madrugada. O calor é apenas uma promessa, qualquer fogo, mesmo que não seja paixão, é o suficiente para que a loucura venha para despertar, não para realizar um novo abismo. 
O amor está inquieto, meio angustiado na fumaça que atravessa as mesas, as trajetórias. No cheiro de tabaco percorrendo a pele, no amargo da bebida disfarçado de inspiração. O amor não cabe no coração, é fugidio para o olho mágico, demanda que o filme navegue por horizontes que ele não conhece, que o som dos pratos, do pisar em ovos encontre lugar na canção bossa-novista. Prossegue numa luz amarela, meio apagada, meio dente envelhecido. Desafia os amantes, sempre ansiosos pela próxima lua cheia. Há noites com sol, como um poeta já pronunciou. Há disparos para não deixar ninguém dormir, já que são quatro horas da manhã. Há momentos, demasiadamente amorosos, que você precisa se fazer convencido pelo seu amor, porque dormir no sofá da dor na coluna, faz a gente acordar de mal jeito. 
Por isso, nesse filme, haverá uma cena, de um plano fechado num sofá amarrotado, marcado pela presença de um indivíduo que dormiu com a televisão, ou que acordou pensando em pedir perdão. Haverá o som do chuveiro ligado, da conversa trivial sobre o próximo jantar, sobre o fracasso do dia, mas não da vida, na ausência da água escorrendo pelo ralo do banheiro. Haverá uma janela grande e aberta, penetrada por um sol imenso e todo festeiro, mal resolvido com a poeira de uma casa vazia. A sugestão de que houve gente nesse chão duro, firme, parecido com tantos outros. Saberão que houve gente nas portas que foram batidas, nos corredores pela casa nostálgica e saudosista. 
Para que o filme sobre amor aconteça é necessário haver impetuosidade na saudade, na porta semi-aberta que range para a escuridão, atrapalha a nostalgia em seu ciclo asfixiante. Lá fora, na rua, continuam as rodas, de bicicleta, algumas pedaladas para deslizar pelo caminho. Alguém que pedala com o desejo de ir, apenas ir, porque traçar um destino se tornou perigoso demais. Acidentes podem acontecer, assim como, eventos já calculados, saber não é o suficiente, muitas vezes a explicação serve apenas para aumentar o prazer perverso da culpa. Em cima da bicicleta, ela segue cansada da culpa, despida da responsabilidade, sem saber se anda em círculos, ou se vai de encontro ao futuro. Existe apenas a certeza, de que um dia o passado foi o futuro. Hoje, nessa manhã, a página virada é o presente. Agora é o momento que ainda não aconteceu nessa história. Porque nesse filme, ninguém está contando história alguma. Ele é uma crônica, como aquela mastigada com tabaco e café preto e amargo por Nelson Rodrigues. Ele é uma harmonia, repleta de buracos, é a inegável, a incontestável necessidade de buscar preencher o vão – no seu enredo - com a nossa vida cotidiana, com as horas mais distantes dessa ordem mais imediata. 
A cada pedalada, ela sabe, “ele ainda faz parte de mim”. Será que ela sente no ventre? Será que ela sente na veia? Será que é na pontada no peito? Será que é na consciência confusa? Será que é no quadril esperançoso? Será que é na carne ainda fresca? Será que é gozo que ainda não aconteceu? Será que é no menino, aquele da noite passada, que desatou aquele beijo? Beijo doce, suave, dava até vontade de continuar. Era apenas flerte ou realmente queria que ele ficasse? Permanecesse ali, do lado de fora, com as mãos no portão, sentindo o afastamento. Com que pedaço de seu sonho, o menino vai preencher o vão nesse enredo? Com uma metáfora, talvez. Mas o amor tá meio seco hoje, parece que essa parte dela não foi tanta desilusão, não deu muito pano pra manga, não aconteceu samba na cerveja antes do almoço. 
Pelo menos ela aprendeu a apreciar o balcão, a não ter medo de beber uma dose sem precisar de um pretexto, sem estar amarrada à solidão de alguém. A sua já basta, aquele disco ainda toca na vitrola, a mesa ainda está posta, cada fatia de cebola quase transparente sobre a mesa. O sonho de fazer tempero com carinho, de gozar a cachaça descida pela garganta, não apenas ceder ao desejo de camuflar a sua dor, de preservar a sua vida produzindo todo tipo de consequência. Há coisas que precisam morrer, algumas nem merecem ser plantadas. A morte, porém, nunca é sentida com indiferença, há um grão de vida que deixa de permanecer, ás vezes está tão podre que grita pra ser abandonado, ás vezes aumenta a sua podridão com a ilusão de que ainda pode ser possível, de que será o futuro, que é passado ainda presente.
Passageira, como ela pode ser, teve de se livrar de alguma bagagem, no decorrer dessa viagem. Precisou seguir o vento, e as verdades que ele não sabe dizer. Aprender que a superação não é medida pela distância percorrida, mas quando já não existe mais a barreira ultrapassada. Por isso, o olho mágico seguirá pela estrada, adentrará a paisagem, será parte dela. Às vezes não saberemos da onde ele vem, às vezes a linha do horizonte estará desfocada, porque não saberá descrever para onde está indo. Prosseguir é preciso, quando ir adiante não é repetir o caminho da volta. Porém, como numa canção, algumas cenas desse filme sobre o amor serão parecidas com a trajetória da ida, saberemos que não é a volta, que o fim não foi atingido. Sobre o final, em sua completude, jamais conseguiremos pronunciar. E o que sobrou do amor agora, depois do fim? Um vinil, uma chita, alguns trocados, palavras dissonantes, o eco do silêncio repetindo até mudar de vez. 





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