Acho que isso tem ocorrido já há algum
tempo, não sei dizer exatamente quando, ou como, começou. Eu mesmo...pensando
agora, já havia percebido. O som no cinema nacional está diferente. Antes era
um atrevimento, uma ousadia, dos europeus, dos estadounidenses. Dos hermanos
argentinos acredito que nem tanto. O sussurro se tornou a unidade elementar do
diálogo. Essa coisa assim meio charmosa, meio encantadora, que era coisa de
filme gringo, tem dado as caras, marcado presença, nos filmes brasileiros.
Outro dia assisti Divino Amor, lançado este ano, cuja direção é assinada pelo pernambucano Gabriel Mascaro. Em grande parte
dos diálogos, eles não falavam, sussurravam, e eu, do outro lado da tela, podia
ouvir e entender. Algum pretenso a purismo levantaria o dedo em riste e a voz
de maneira acusativa:
- Mas e...aquela coisa
assim...iiiihhhhh, aaaahhhhhhh...intensa! Forte!
O próprio Glauber Rocha confessaria que
fazer captação de áudio, há cinquenta, sessenta anos atrás era um ato bravio,
heroico e dificílimo. Não era apenas por maneirismo, ou questão de estilo, que
o cineasta baiano agitava os braços e as mãos para o Paulo Autran, em Terra em
Transe, atrás das câmeras, exclamando:
- Mais! Mais! Mais! Isso sem dizer uma
única palavra, apenas com gestos e expressões faciais que sugeriam a pronúncia.
O que provavelmente rascunhava uma figura muito engraçada, cômica e...genial[1].
Para Glauber era na lida com cada
dificuldade, cada desafio, que germinava sua alternativa estética, que não
precisava ser sinônimo de eloquência. Ele próprio reconhecia que a sutileza do
Padre e a Moça (1966) de Joaquim Pedro de Andrade, realizado a partir de um
poema de título homônimo do poeta mineiro de Itabira, era tão visceral e
pulsante como a impetuosidade de seu Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e o
já citado, Terra em Transe (1967).[2]
O Divino Amor possui uma proximidade, ou
outra, com o Padre e a Moça, não apenas pela provocação de enriquecer a camada
implícita da realidade, mas, também, por situar a sua narrativa na convergência
que por ser encontro, não deixa de produzir tensão, entre a religiosidade, o
desejo e a sexualidade. O que pode haver em comum enquanto significado dessas
palavras é a dimensão social que existe no traço, contorno e interior delas.
Trata-se de uma sociabilidade vivida assim de maneira cálida em um estado de
incipiência e inovação, ou de luz lançada à nudez dos sentidos e da
sensibilidade.
O diretor do filme lembra – nesta obra –
a outro cineasta. Ao produzir uma ficção científica
retoma a perspectiva do francês Godard expressa em seu Alphaville (1965):
- Certas histórias precisam ser contadas
como lendas para que possam circular pelo mundo.
A história de Divino Amor manifesta uma
possibilidade de vida futura muito mais próxima do que se possa imaginar. Ao
falar de religiosidade como um fenômeno social, Mascaro denuncia uma
sexualidade mais dilacerada, do que fragmentada, em uma época em que a palavra
conexão é quase que esvaziada de sentido. Nos perdemos de ser humanos é o que o
cineasta brasileiro anuncia. É mais verossímil e sincero dito assim ao pé do
ouvido em uma obra audiovisual que esbanja qualidade técnica em todos os
sentidos.
Se houve uma época, mesmo que nela
talvez já não fosse preciso, em que se justificasse uma coisinha aqui, outra
lá, dizendo: - ah, é filme nacional. Hoje tal afirmação perde qualquer sentido.
O discurso pretérito também correspondia à apreciação de uma indústria
cinematográfica que floresceu no Brasil durante as décadas de 70 e 80,
caracterizada pelo gênero que se convencionou chamar de pornanchanchada. Ela
nada remetia, sequer um milésimo, daquela sonhada pelo Glauber que tão bem
soube descrever as glórias e desafios do cinema independente. A partir deste,
para ele, emergiria uma indústria do cinema nacional engajada a um processo
revolucionário radical[3].
A revolução não aconteceu, os militares
conduziram todo o desdobramento do processo de industrialização, com a
perspectiva de conferir prioridade aos aspectos técnicos, em detrimento da
questão social[4].
O som agora está diferente, mais e
diversas camadas sonoras se tornaram perceptíveis, isto é, possíveis de serem
sentidas. E na trilha sonora de outro filme, que assim como Divino Amor, teve
sua estreia realizada neste ano, há referências a Sérgio Ricardo, que
desenvolveu composições musicais a pedido de Glauber para os filmes deste. Há
um pouco, também, de Geraldo Vandré, que na sua música incorporava a luta
contra a ditadura militar. Me refiro a Bacurau, dirigido pelo pernambucano
Kleber Mendonça Filho. Vejo no fundo de um plano e outro do filme a insurgência
de um povo, de uma outra cidade pequena, de um vilarejo filmado pelo Glauber em
seu Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969). Existe a mesma devoção à
possibilidade de levante, de revolta e ímpetos de potência revolucionária.
Pelas memórias do cangaço manifestas em
Bacurau, por ser de origem pernambucana o cineasta que o conduziu, poderia
remeter ao Lírio Ferreira e o Baile Perfumado (1997) dirigido por este. Um dos
exemplares do Novo Cinema Brasileiro, que não foi um movimento artístico
cinematográfico, mas enquanto expressão publicitária sugeria a inversão dos
termos de um momento de nossa história brasileira que tenha sido: o Cinema
Novo. Ruy Guerra, integrante deste, amigo e contemporâneo de Glauber, abraçou o
cinema brasileiro que se reinventava em meados da década de noventa[5]. Um
pouco mais de vinte anos depois do lançamento de Baile Perfumado, o cinema
brasileiro segue vivo e pulsante.
Longe de qualquer saudosismo que
atrofie, é preciso reconhecer as forças, vitalidades, novas, que se expressam
tanto em Divino Amor, como em Bacurau, no momento quando aguardamos a estreia
de Marighella que já não sabemos se ocorrerá. Não por uma questão técnica,
lembrem-se, o som do cinema nacional mudou, está diferente, está melhor, mas
porque não podemos esquecer que a história pode se repetir. Nada mais urgente
que trazer à tona, à superfície da memória, as trajetórias de Vandré, Sergio
Ricardo, Glauber e Joaquim Pedro de Andrade, quando a censura volta a ser uma
possibilidade. Chamá-la de filtro sequer é um disfarce, um termo é quase
sinônimo de outro.
A extrema direita avança claramente, sem
qualquer véu, ou subterfúgio. Como antes volta a afirmar uma ameaça comunista
que sequer existiu algum dia no Brasil com a força e vigor que lhe são
atribuídos. Cuba volta a ser o inimigo, ainda que pra muitos de nós nunca tenha
sido. Soma-se agora a Venezuela. E um governador de algum estado em estado de
guerra civil (ou quase isso) comemora assassinatos e se ausenta de explicações
contundentes para o homicídio de crianças[6]. Nada mais coerente, ele pretende
ser o próximo presidente da república.
Se no Divino Amor é anunciado:
- Que nos perdemos de ser humanos. Em
Bacurau, o povo enquanto criança enfatiza quando questionado:
- Quem nasce em Bacurau é o quê?
- É gente!
A ironia na obviedade da resposta
escancara a violência da pergunta. Não é tão óbvio assim, afinal. Marx já
afirmava e repetia: - indivíduos reais.
Ênfase no fato que essas pessoas, que são consumidas pelo capital, são reais. Sentam,
comem, pensam, falam, gozam e tentam viver[7]. A insurgência do povo de Bacurau
encontra ecos e ressonâncias de levantes populares que emergem das favelas e
morros do Rio de Janeiro:
- Parem de nos matar!
Referências
[1] Glauber
o Filme, Labirinto do Brasil (Silvio Tendler, Brasil, 2004, 98 min.)
[2] ROCHA,
Glauber. Revolução do Cinema Novo: Embrafilme, Rio de Janeiro: 1981
[3] ROCHA, Glauber.
Cartas ao Mundo. Organização: Ivana Bentes. – São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
[4] DELGADO,
Guilherme da Costa. A questão agrária no Brasil, 1950-2003. Cap.2, pp.51-91.
Em: A questão social e as políticas sociais no Brasil. Brasília, DF: IPEA,
2005.
[5] Acossada (Karen
Akerman, Brasil, 2006, 7 min.)
[6]
Ler “É preciso acabar com a hipocrisia de chama-las de balas perdidas. São
balas assassinas”, redigido por Juan Arias e “Como vocês se atrevem?” de Eliane Brum. Ambos publicados na versão
eletrônica do Jornal El País.
[7] MARX,
Karl. O Capital: crítica da economia política. Nova Cultural: São Paulo, 1996.O que não nos mata, nos torna mais...estranhos
Introdução
A primeira vez que soube da existência
de um filme referente ao personagem Batman, dirigido por Christopher Nolan, foi
por acaso, quando visitei uma videolocadora há catorze anos atrás quando ainda
morava em minha cidade natal – Barretos – no interior do estado de São Paulo.
Era habitual que visitasse
videolocadoras e buscasse conhecer seus respectivos acervos, quase sempre na
busca de um filme dirigido por Goddard, ou conduzido por Hitchcok. A procura,
esse tipo de procura, em uma cidade que é considerada a capital country do
país, revelava-se frustrada. A insistência me levava a conhecer outras obras
cinematográficas. Foi assim com o Irreversível, de Gaspar Noé, o Festa de
Família, de Thomas Wintenberg e o Silêncio, de Mohsen Makmalbaf. Esse tipo de
aproximação suscitava outra forma de contato, que era despida, a princípio, de
maiores pretensões, ou de tentar enxergar a pertinência com algum crítica, ou discurso
teórico, já conhecidos antes da experiência de apreciação fílmica.
Foi dessa forma quando entrei em contato
diretamente pela primeira vez com o filme Batman Begins, de Christopher Nolan.
Quando o assisti, vi – de maneira inédita e simultaneamente autêntica – a
presença do homem-morcego que correspondia àquela que emanava da história em
quadrinhos. Nesta forma de mídia, o personagem era traçado com dramas e com
questões morais e éticas que até então não encontravam expressão no universo
audiovisual. Talvez em uma séria animada que era transmitida pelo SBT no início
da década de noventa, mesmo assim, nada se aproximava a como Nolan contava a
origem do herói. Não era uma reprodução exata do que já havia sido publicado em
hq, mas manifestava a mesma atmosfera densa e complexa, que remetia a influências,
ainda que de maneira indireta, da filosofia idealista alemã, pois apontava a
importância dos símbolos, a luta pela constituição de uma ideia que fosse
transcendente e que tivesse força histórica para mudar os rumos já conhecidos,
inclusive vividos cotidianamente. Havia, também, um sentido próprio,
específico, subjetivo, tão bem percebido pela personagem Rachel quando
elucidava a Bruce Wayne, que este era a máscara e Batman a sua face verdadeira,
real, inclusive por ter sido edificada para dar sentido a alguém que sofria
para encontrar qualquer sentido na vida vivida.
O Batman, enquanto ideia e sentido, é
algo além – no filme de Nolan – que a realização de vingança pela morte dos
pais de Bruce, ou de justiça por uma cidade e uma sociedade tão pouco
conhecidas por ele, ou por seu alter-ego. Ele não busca conhece-las
profundamente, radicalmente; pelo contrário, se afasta, promove um autoexílio
num processo muito mais voltado para a criação de uma identidade, do que para o
desenvolvimento de um autoconhecimento. Essa forma de negação que se desdobra
no consciência dos próprios limites carrega em si uma atmosfera de depreciação
e autodestruição.
Tal trajetória rememora ao nascimento de
Neo na trilogia Matrix, quando este personagem se afasta da superfície para
conhecer a essência das relações
envolvidas na vida experenciada e sentida de maneira imediata, direta.
Em ambos os filmes, a retirada do véu, seja no tapa na cara de Bruce desferido
por Rachel, ou na pílula tomada por Neo, oferecida por Morfeus, descortinam e
revelam outras camadas da realidade bem mais empobrecidas, precárias,
miseráveis, em que a possibilidade de existência não pode ser outra coisa que
não a batalha, a luta. No entanto, no Matrix, o combate é contra a ordem social
estabelecida de acordo com a especificidade manifesta no filme, enquanto no
Batman, esse de Christopher Nolan, a pretensão de Bruce é que o enfrentamento
real, efetivo, à criminalidade através do combate à figura do criminoso, principalmente
a seus patrões e estrutura organizativa, em que a lei não funciona, ou se
efetiva de maneira estreitamente seletiva, desatasse a insurgência da
esperança, a imanência da ideia que a justiça é possível. A carência de uma
crítica mais radical às autoridades institucionalizadas, à esfera estatal, como
também, a ausência de um conhecimento mais aprofundado do encadeamento de
fenômenos que aprendemos a chamar de “corrupção” talvez sejam alguns dos
motivos para o êxito do surgimento do Coringa no filme que dá sequência à
trilogia conduzida por Nolan.
Se no primeiro, o cineasta esbanjava sua
habilidade e a sua equipe, também. A trilha sonora de Hans Zimmer, a fotografia
de Willian Pfister, os talentos na composição do elenco que manifestava a
atenção para os detalhes: os coadjuvantes tão importantes como o protagonista,
no segundo – intitulado Batman, o Cavaleiro das Trevas – assistimos à
personificação de Coringa através da interpretação excepcional de Heath Ledger.
Não seria um absurdo afirmar que o personagem se apropriou do ator e não o contrário.
O figurino, a maquiagem, a entonação da voz, a expressão corporal, todas essas
características configuram Ledger irreconhecível. Um exitoso processo de
metamorfose. Enquanto Bruce ao se afastar de Gotham, buscava no autoexílio a
construção de outra identidade, já que a sua lhe deprimia e depreciava a si
próprio, Ledger é qualquer outra coisa que não si mesmo ao ser tomado pelo
Coringa e toda a simbologia anárquica – quase de inspiração anarquista –
envolvida no florescimento deste. Este que aqui escreve está consciente que num
caso se trata da metamorfose de um personagem em outro, enquanto que no segundo
que é exposto aqui, de um ator em uma existência fabulêsca, fictícia. A
abordagem aqui sugerida é a consideração da manifestação indireta de um discurso
metalinguístico, mesmo que não tenha sido a intenção do diretor, roteirista,
produtor, criadores do filme.
Destaca-se que o tratamento de Coringa
na trilogia de Nolan conferiu uma difusão e projeção maiores, ainda mais ampla,
quando comparado ao Batman que seria o herói e personagem protagonista. Nos
últimos dez anos, aproximadamente, Coringa tem se destacado nas trajetórias da
cultura pop não como uma referência heroica, ou como uma espécie de denúncia à
ausência de uma crítica social na perspectiva de seu arqui-inimigo, ainda que
Nolan tenha lançado luz a toda uma conjuntura envolvida nas origens do Batman,
mas como expressão de uma força destrutiva, desintegradora, que emerge no
imaginário popular enquanto assaltante de bancos que personifica uma campanha
exitosa de violação da propriedade privada, mesmo que não resulte em sua
dissolução e superação completas. Também enquanto matador de policiais, como o
possível levante contra figuras representativas dos carrascos, dos guardiões
mais diretos da ordem social estabelecida.
Seria um equívoco não considerar os
méritos de Ledger em sua interpretação presente no Batman – O Cavaleiro das
Trevas – que foi lançado em 2008. Ele morreu logo depois e não faltaram pitacos
que atribuíssem à encarnação do personagem o desenlace de sua morte. Não é a
perspectiva defendida aqui, mas é destacado que depois dele, se tornou difícil,
quase impossível, imaginar outro que pudesse atuar de maneira tão hábil,
talentosa, na cara, figurino, carapuça e carne do Coringa. Mesmo com todo o
talento já demonstrado em outros trabalhos, Jared Leto não convenceu em sua
interpretação que integra a composição de Esquadrão Suicida, lançado em 2016.
Em uma indústria, como a audiovisual, em
que tudo se renova, se recicla, ou que esses termos seriam apenas eufemismos
para a cópia, ou apropriação indevida, como ocorre nos Estados Unidos, em que
remakes são lançados sem as devidas referências aos originais, o Coringa de
Ledger e Nolan coloca uma pulga atrás da orelha para os investidores no
entretenimento enquanto mercadoria. Algo semelhante ocorreu com o próprio
Batman. Enquanto na década de noventa, Val Kilmer e George Clooney sucederam
sem sucesso a Michael Keaton, sem causarem, também, muitas queixas, Ben Afleck,
após a atuação de Christian Bale na trilogia de Nolan, foi mais exigido que os
anteriores, talvez. Não apenas ele, mas outras experiências envolvidas no
desenvolvimento do universo cinematográfico da DC Comics, não corresponderam às
expectativas, principalmente quando comparadas às investidas recentes da Marvel
na indústria do cinema.
Foi necessário ouvir o imaginário
popular. Depois da trilogia de Nolan é provável que o filme Coringa, lançado
agora, em 2019, dirigido por Todd Phillips, que não é expressão de um cinema de
autor (diferente de Nolan), ou de uma arte engajada politicamente, seja a
melhor obra audiovisual vinculada à DC Comics. Não foi possível superar a
atuação de Heath Ledger, mas dificilmente alguém conseguirá ir além de Joaquim
Phoenix, inclusive porque aquele já faleceu. Este emana o protagonismo em uma
trama habilmente conduzida por Todd Phillips. Nas linhas a seguir, poderia
tecer elogios minuciosos à cada segmento desta composição. Atores, atrizes,
fotografia, edição, maquiagem, figurino. Mas direcionarei a atenção ao que
emerge da história filmada e contada, do brilhante roteiro que foi redigido.
A piada mortal de Todd Phillips e Joaquim Phoenix
Não, o Coringa não é um justiceiro, um
vingador, ou um herói dos injustiçados. Também não é uma aberração da natureza,
uma exceção terrível. Sim, o filme envolve a expressão de uma crítica social,
pois o problema maior não está na doença mental, em algum tipo de transtorno
psiquiátrico, ou neurológico, mas na normalidade. Os padrões, parâmetros,
estabelecidos que dividem as pessoas em categorias de úteis, exitosos e
excluídos, são extremamente agressivos. É quase um absurdo afirmar que as
pessoas tem qualquer tipo de direito no contexto que configura o filme Coringa.
Todas as instituições falharam com ele,
que primeiramente é Arthur Fleck. A família, como núcleo de relações sociais
estraçalhado que não propicia o mínimo de afeto, de carinho, de proteção. O
Estado, que não lhe proporciona o básico de um atendimento específico para o
sofrimento que é manifesto. Ele diz, quando ainda Arthur: eu continuo dizendo,
mas você não escuta. A mídia, que se apropria de seus sonhos e de sua dor para
vender mais. E a burguesia, também, que é representada pelo pai de Bruce Wayne,
Thomas Wayne. Este lança a sua candidatura à prefeitura de Gotham com a
promessa de apresentar um plano de governo, que tenha em seu cerne, o fim da
pobreza, da miséria, mas que desconhece, ou não entende o pobre, o miserável.
Não sabe como esse vive, se alimenta, veste e mora.
A irrupção da violência proferida por
Arthur inicia como autodefesa. Alguém dirá que não justifica os homicídios, que
sua reação é exagerada, desproporcional, mas vale lembrar a facilidade com que
tem acesso a uma arma de fogo em um país que o porte da mesma é legalizado no
momento em que é eleito um presidente neste país que defende que o mesmo tipo
de legislação vigore por aqui.
O segundo episódio irruptivo é
antecedido tanto por uma revelação que confronta a imagem materna interiorizada,
como também, pela traição deflagrada por sua própria condição de saúde, que sem
a devida atenção coloca qualquer possibilidade de esperança como uma projeção
já fadada a um destino abismal.
As dimensões alcançadas pela violência
que completa a metamorfose de Arthur em Coringa indicam o quão tênue e frágil é
a superfície da aparente normalidade e que cada pessoa, cada indivíduo, cada
cidadão, é o invólucro de violências tão intensas quanto as brutalidades
vividas cotidianamente em uma sociedade que além de desigual em suas condições
de existência, exibe toda a sua agressividade com a ironia liberal que acena o mercado
como o metabolismo social de oportunidades iguais. O que se desdobra em um
mídia que ri do sofrimento alheio.
Todas as ideias, todos os sentidos, como
aqueles defendidos pelo Batman, que ainda não existe nessa história de origem
do Coringa, estão ou parecem invertidos porque a mesma realidade que os
engendra não alimenta a possibilidade de concretização dos mesmos.
A risada impertinente, ou incoerente, do
Coringa, é mais que um sintoma de um distúrbio neurológico, como ele enquanto
Arthur tenta justificar, é quase uma subversão de sentidos e significados
postos racional e ideologicamente. A comédia é subjetiva, já como Coringa ele
dirá diante das câmeras televisivas e de um apresentador que nele enxerga
apenas a fonte de alimento para a indústria do entretenimento. A comédia é o
próprio drama da vida quando toda tentativa de modificar a própria condição de
vida se torna uma experiência de tentativa-e-erro. Uma tragédia, então. Porque o
Coringa de Phillips e Phoenix é o comediante que não é engraçado. O próprio
filme desafia a fronteira do cinema comercial, de sua finalidade de
entretenimento. É um soco no estômago. Não nos coloca na posição de
entendedores de todos os motivos envolvidos no desfecho da história. Nem como
torcedores do personagem protagonista, porque mesmo todo sofrimento desvelado
não torna mais aceitável, ou justificável, o desenlace brutal que envolve o
surgimento do Coringa. Ele mesmo afirma:
- Eu não acredito em nada disso.
A conquista artística do filme é que,
através da fantasia, que não deixa de ser uma objetivação, ou camada da
realidade, possibilita a empatia com aquele que a princípio é a existência vilã,
cruel, maldosa, a face que deve ser rejeitada, negada. Não porque é possível
nos colocar de forma concreta e plena na vida vivida por Arthur, ou pelo
Coringa, mas pelo potencial emergente de sensibilização, de afetação, para a
tragédia e sofrimento alheios. Porque não é a doença, ou a suposta falta de uma
estrutura familiar, ou a má sorte, que são responsáveis pela origem do Coringa
e do horror envolvido nas trajetórias tecidas pelo próprio, é a necessidade
ideológica de sustentação da perene e tênue normalidade, de alimentação à
imagem de uma ordem social que esteja completamente divorciada, estanque, da
desordem e do caos, como se a cúpula, o altar, o brilho do sol refletido na
igreja matriz, não precisassem da vida que transita pelas beiras, pelas margens
e periferias, quase que nessa geografia delineada por ratos e lixões.
É imperativo para a burguesia não lembrar que lá
também existem corações, que lá também vivem indivíduos que são reais. Que
sentem, pensam e pulsam. Que são seres sociais, assim como nós, que enquanto
sociedade, enquanto mais, ou menos, perto do que seja humanidade somos todos
responsáveis pelo Coringa e por sua incontível trágica violência, brutalidade.
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