quinta-feira, 27 de abril de 2017

Meu amigo poeta,
Meu amigo bêbado,
Meu amigo velho,
Magrelo e velho,
Que atravessa a noite para entregar uma flor no amanhecer;

Que é aquela flor,
Que nasce no meio do asfalto,
Arrancando pedaços de asfalto
E atropelando carros;

Que deixa aquelas lágrimas,
Camufladas pela ironia e cinismo caminharem pela sua pele,
Às 3 horas da madrugada,
Enquanto pede um copo d´água,
E diz insultos rimados com cheiro de álcool,
Com cheiro de rum,
Com cheiro de tabaco,
Com cheiro de cachaça;

Poeta, calvo, magrelo e corcunda,
Não quer ir para casa,
Não quer fechar os olhos,
Conta histórias de sua musa
Numa fotografia de um cemitério;

O sol sempre aparece para lhe dizer que a noite não é infinita,
Para ferir seus olhos,
Que lúcidos, por isso embriagados,
Enxergavam os pontinhos luminosos no céu,
Que nós chamamos de estrela,
Mas o poeta chama de verso de uma cantoria
numa serenata na janela de uma rapariga;

As buzinas aceleram o seu passo,
As crianças passam e riem do seu chapéu,
Ele continua a caminhada com o saco de pães numa mão
E o de leite na outra;

Seu lar está longe,
Fica atrás do próximo arranhacéu,
Depois que subir e descer ladeiras,
E passar por aquelas ruas antigas
Que já aprenderam a dizer o seu nome,
E se lembrar, novamente,
Daquela casa velha que ainda inspira poemas;

Seu lar não existe mais,
Só existe o sol,
Só existe o céu azul,
Claro azul,
Sem nuvens,
Luminosidade quente que corta a pele;

Seu corpo molhado ainda prossegue,
Até que tombe no meio do dia,
Até que o cansaço lhe coloque na cama,
E então de cansaço não haverá força
Nem para a ironia,
Nem para o cinismo,
Nem para as lágrimas camufladas em ironia e cinismo;

Quando a queda acontecer,
No meio do dia,
Ou em cima de sua cama,
Depois dela será um estado de transe,
Como a meditação oriental e aqui também;

Sem um único pensamento,
Sem uma única lembrança,
Não haverá energia
Nem para abrir um sorriso no seu rosto,
Ou para expressar dor,
Permanecerá ali,
No canto,
Perto da parede fria,
Envolvido no lençol molhado,
Para que seus olhos afundados dentro de si
Não revelem as horas que passaram,
Para que as batidas de seu coração não sejam aceleradas pelo atraso,
Ou pela moça que passou,
Para que a tarde quente,
Clara e ensolarada
abandone a existência do poeta,
E o manto escuro da noite venha lhe cobrir novamente;

E a lua meia, cheia,
Amarela ou branquinha,
De enxerida,
Faça um buraco em toda essa escuridão,
E espie os cabelos brancos em sua cabeça;  

Permaneça ali no céu,
Tão imensa que invade a pele e arrebenta o coração,
Como uma fenda luminosa no mundo dessa noite,
Convidativa para conhecer o universo que transborda a solidão.

Na ponta afiada da língua do poeta,
Na tinta de sua caneta,
Cada fantasma:
- Inconformado com a própria existência pretérita,
Passageira,
Declina no seu ouvido,
Suavemente,
Melodias miúdas,
Que ao se encontrarem,
Produzem uma atmosfera caótica;

- Estou no mundo dos vivos:
Diz o poeta,
Insiste o poeta;

- É preciso colocar ordem nesse caos:
Tenta o velho poeta,
Convencido que seu corpo magrelo e franzino
Não pode suportar um coração,
Que mais parece uma escola de samba
cantando marchas e gritos de guerra
de uma Década que não existe mais;

O futuro é avassalador,
Ele não é uma brisa,
Como o trompete e canto cool de Chet Baker,
Que canta na orelha da janela,
Pedindo para adentrar a casa;

É um tufão que arrebenta vidro e madeira,
Estremece a casa inteira,  
Sacode o esqueleto exprimido na mesa de jantar:
- Entre a carne vermelha, pulsante, e a sobremesa;

É necessário uma cerveja gelada,
Estupidamente gelada,
Para digerir o sangue ainda quente da carne vermelha,
Para digerir a distância entre os olhos e a morena que passou,
Atravessou a paisagem quente e calada da noite,
Com seus longos cabelos encaracolados,
E levou a noite do poeta novamente para o caos,
Que buscava resolver com suas rimas rigidamente calculadas,
Onde tudo novamente abraçava um lugar graças a deus;

Agora há um rastro deixado pela morena,
Que sumiu sem dizer para onde ia,
Onde mora
E se voltará algum dia;

Há aquele cheiro de tabaco mergulhado no ventre da noite,
Que escorrega pelos dedos finos e ágeis do poeta,
Que tenta encontrar nas cinzas
O perfume que desabrochou no seu peito e disse:
- Vem!

Como sugeriu a garrafa vazia sobre a mesa de madeira,
E todas aquelas garrafas cheias gritam o seu nome,
Clamam para que ele se afaste da mesa de madeira
E da tinta de sua caneta;  

O rastro da morena é apenas um aviso do que a noite promete,
O sorriso que o poeta ainda não avistou em sua face
É a chave na fechadura da porta,
É o vão preciso para o lançamento imprevisto
Que essa noite precisa;

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